Artigo: Pulo do gato de Tom Jobim foi descobrir nova gramática pro samba

Written by on 30 de agosto de 2018

RIO — Não me sai da cabeça a cena de “Tim Maia”, filme baseado na biografia do rei do soul brasileiro, escrita por Nelson Motta: o jovem Tim entra com amigos num bar do Beco das Garrafas, à procura de Carlos Imperial. O produtor, naquele momento, está prestando atenção no show de bossa nova, só cantora e violonista, tipo Nara Leão acompanhada por João Gilberto. Tim senta em outra mesa, algo o vai incomodando. Até que vocifera para Erasmo Carlos, ao seu lado: “Sacou aquele xarope do violão? Em metade de uma música ele fez mais acordes do que eu e você uma vida inteira!” E vai embora, num rompante.

Para além da batida diferente, está aí, aos ouvidos do senso comum, o pulo do gato de Tom Jobim e os demais criadores do novo gênero. A riqueza harmônica da bossa nova foi uma novidade que causou impacto, em contraste com a frugalidade dos acordes do iê-iê-iê, do bolero e do samba tradicional. Melodistas e arranjadores brasileiros já maturavam dissonâncias desde os anos 30, como Ary Barroso, Custódio Mesquita, Radamés Gnattali, Valzinho e Garoto. Mas foi a geração de Tom Jobim (ao lado de João Gilberto, Newton Mendonça, Johnny Alf, João Donato, Dolores Duran, Luiz Eça, Baden Powell, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Joyce e outros craques) que alcançou novos horizontes, descobrindo uma gramática diferente para o samba.

VERÍSSIMO: O berço da bossa

Acordes alterados, alargamento tonal, modulações generosas, empréstimo modal frequente. Em linhas gerais, aí está o arsenal de tecnicalidades musicais a serviço da bossa nova, construído especialmente a partir da intimidade de Tom Jobim com os impressionistas franceses Debussy e Ravel, o romântico Chopin, o modernista Villa-Lobos, além dos precursores brasileiros aqui citados, mais o velho choro carioca e pitadas de bebop e cool jazz.

É de se notar que toda essa sofisticada arquitetura harmônica emoldura melodias muitas vezes simples, fáceis de cantar, com notas repetidas, poucos saltos e arpejos, extensão econômica, feitas sob medida para as letras despojadas e concisas da bossa. O melhor exemplo dessa antinomia talvez esteja na primeira parte do “Samba de uma nota só”, de Tom e Newton Mendonça, delicioso exercício de estilo que encadeia vários acordes em torno da repetição de notas.

Mais importante do que em outros gêneros, a harmonia aqui é tão autoral quanto melodias e letras. Uma vez ouvi a recomendação firme de Carlos Lyra: a trama harmônica criada pelo compositor faz parte da canção, assim como nas peças de concerto, por isso precisa ser mantida e respeitada.

* Luís Filipe de Lima é músico e produtor

Fonte: O Globo.


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